Justiça arbitrária
“Trouxeram-me para depor.
Estou porém, acostumado a defender.
A Justiça, para mim, tem somente uma direção, especialmente no campo a que dei a minha vida.
A força do argumento, baseada na Lei, é a cláusula da verdade. O advogado criminalista é, sobretudo, o intérprete da consciência do seu cliente, que pode aprofundar o exame nas causas despercebidas do crime e defender o delinquente dentro de uma visão que se coaduna com o interesse dele, mas nem sempre o interesse social.
Exerci a advocacia com ardente interesse. Primeiro, ativado pelas concessões que a fortuna pode dar aos que defendem os criminosos que podem remunerar bem. O lado ético, o chamado lado da vítima, deixou de me interessar desde quando, não podendo ressuscitar o morto, empenhava-me em preservar o vivo. Segundo: considerando o sistema penitenciário vigente, arbitrário e criminoso, feito por uma sociedade corrompida, sem me eximir à corrupção que contamina a todos, procurei brilhar no Fórum, defendendo as vidas que me compravam os equipamentos culturais em nome da Lei.
Houve momentos rutilantes no meu desempenho, com réplicas e tréplicas que comoveram as multidões apinhadas no salão do júri, facultando os que confiavam a mim os seus segredos, o retorno à liberdade.
E o fiz, muitas vezes arrebatado pelo entusiasmo ou pela arrogância.
A morte tomou-me o corpo e eu não fugi da realidade. Ainda me sinto arrebatado pelo entusiasmo, porém agora picado de ódio.
Aqui, acusam-me de haver defendido o criminoso e perseguem-me porque não permiti que a Justiça alcançasse aqueles que se entregaram à sanha dos seus sentimentos mais vis.
Hoje me empenho numa luta titânica, desgastante, devastadora, com párias que a morte não aniquilou, do mesmo modo que a mim não destruiu.
Acusam-me e querem fazer contra mim justiça com suas mãos, em nome da Justiça que é cega, deixando oscilar para aquele que lhe ponha mais ouro no prato da balança que segura. Foi o que eu fiz. Desde os dias remotos da Grécia, passando pelas civilizações de Roma, das Gálias e dos Íberos ou ainda mais recuadamente na arbitrária justiça de Salomão, nem sempre a sabedoria ganhava a causa da verdade, e sim a astúcia, a habilidade, a maneira de armar o sofisma e de engendrar a defesa utilizando-se da cupidez dos outros.
No júri popular, em especial, desarmados da compreensão das sutilezas da Lei, os jurados passam, muitas vezes, de instrumento de emoção que o criminalista sabe utilizar com habilidade para atingir seus fins.
Mas agora dizem que eu sou tão criminoso quanto os criminosos que defendi; por quê? Porque as suas vítimas pelo menos esperavam a justiça e voltam-se contra mim,travando-se novas pelejas em que sou levado a julgamentos mais arbitrários do que aqueles de que eu participei, arrastando-me a verdadeiros pelourinhos de execração pública, nas quais, exposto como um Quasímodo, sou vítima de escárnio, de chalaça e da zombaria dos biltres a quem detesto com todas as forças da minha vida.
Perdi o contato com o tempo e não sei qual a razão por que me trazem aqui para depor, a fim de que a minha desdita possa ser útil. Duvido muito que a voz da sepultura consiga modificar a paixão pelo dinheiro de quantos estão na ribalta dos interesses mesquinhos, disputando os ouropéis por cuja conquista todos nos engalfinhamos. Eu sou o desgraçado, que reconhece a desdita, mas cujo orgulho não me permite recuar. Sofro, e faço sofrer, porque as sombras vêm, acusando-me de dedo em riste, e mostrando-me a desgraça que se lhes abateu sobre o lar.
Não posso recuar no já feito. Não me arrependo, pois que cumpri com o meu dever perante a vida. Fui pago para defender e, se fosse necessário e possível, eu repetiria, novamente, todas as façanhas porque, desgraçadamente, só depois da morte que se pode avaliar a vida.
Aqui estão comigo, no mesmo pelourinho, os que se deixaram vencer pela venalidade: juízes inescrupulosos, promotores corrompidos, advogados malsinados que, juntos, desrespeitaram a lei. Qual lei, porém? As leis humanas, são todas trabalhadas pelos interesses dos mais fortes sobre os mais fracos, dos dominadores sobre os vencidos, dos poderosos sobre os desgraçados. E como aprendi que a Lei de Deus está refletida na lei da justiça dos homens, eu me justifico, e se a consciência não se submete à minha justificativa e os meus perseguidores inclementes me pretendem crucificar, então mil vezes, sem que haja distinção da minha consciência, que o façam. Engalfinhar-nos-emos nesta luta pelo dobrar dos tempos, até que uma consecução desarvorada e aniquiladora se abata sobre nos, tornando-nos sonâmbulos do horror, mumificados pelo ódio, até o término das eras” (Pereira Franco, Divaldo: Depois da Vida” Ed. Livraria Espírita Alvorada Editora; Salvador-BH, 1997).
Retirei do livro: Criminalidade, Doutrina Penal e Filosofia Espírita de Cândido Furtado Maia Neto e Carlos Lenchoff.
Iride Eid Rossini