Nota do compilador: Abaixo, uma pequena mostra do sofrimento de um
suicida no Plano Espiritual. Várias obras ditadas pelos espíritos nos
dão conta que o suicídio é a pior saída para quem quer fugir de
situação que acha impossível solucionar. Ninguém tem o direito de
tentar impedir a ordem natural da vida. Quem desejar saber com
profundidade as consequências de um suicídio, pode ler a obra
"Memórias de Um Suicida", ditada pelo espírito do famoso e importante
escritor Camilo Castelo Branco, onde nos conta todo o seu sofrimento
após suicidar-se, em 1890.
Henri Numiers não acreditava que houvesse uma alma imortal
animando seu saudável corpo de homem. Para ele, existiam
apenas os ossos, as carnes, os nervos, artérias carreando o sangue
necessário à vida. Era materialista. Por isso matou-se, assim tentando
fugir à situação moral que o incomodava. Uma vez morrendo o homem,
acreditava ele, a alma, se existisse, se extinguiria também com ele.
Pensamento, amor, inteligência, sentimento, ação, honra, desonra,
ódios, amarguras, decepções, tudo o que constitui o ser moral humano
cria ele que se aniquilava no túmulo juntamente com o corpo. Dos belos
sermões filosóficos de Rômulo e de Thom sobre os graves problemas do
homem e sua alma imortal, feita à imagem e semelhança de Deus, Henri
só guardava a lembrança da ansiedade com que esperava o fim para
regressar a Numiers e rever Berthe. Contudo, o maior desapontamento o
desgraçado moço colheu do seu ato de suicídio quando, ao primeiro
amargor que a vida lhe apresentara, desejou furtar-se a ele,
matando-se.
Caíra de todo a noite e em Numiers e suas imediações pairava
completo silêncio. Havia alguns meses que Henri desaparecera do mundo
terreno, mas a desolação era porventura maior tanto em Numiers como em
Stainesbourg e Fontaine. Pai Arnold não mais trabalhava,
desinteressando-se da prosperidade da Quinta, e Marie continuava
enferma. Era inverno. Contudo, naquela noite, o luar irradiava,
emprestando àquele recanto da velha Flandres certa doçura de ambiente.
Na aldeia de Numiers uns dormiam, outros velavam, alguns sofriam
e choravam, e o silêncio presidia tudo.
De súbito, um grito agudo e forte repercutiu do vale do ribeiro
estendendo-se pela aldeia. Na Quinta, que ficava próxima a esse vale,
o grito fora também ouvido. Os cães uivaram tristemente, as ovelhas
baliram, dolorosas, no aprisco, cochicharam os galináceos,
assustados... e Marie e Arnold, que se achavam ainda despertos,
entreolharam-se tomados de pavor e caíram em pranto. Haviam
reconhecido naquele grito a voz do filho que morrera havia pouco.
Rômulo, padre e médico, achava-se à cabeceira de Marie. Benzeu-se
discretamente, dizendo consigo mesmo, comovido:
- É a alma alucinada do meu pobre Henri...
- Ouvistes, meu Padre? - interpelou pai Arnold.
- Não, Arnold, nada ouvi. Que foi?
- Um grito de desespero, a voz do meu rapaz...
- É a tua impressão, meu pobre Arnold. Afasta da ideia esses
pensamentos lúgubres...
- Marie também ouviu, meu Padre, os cães uivaram, as ovelhas gemeram.
- Ora, Marie está enferma e a febre excita-lhe os nervos e a
imaginação. Os cães ladram sempre, as ovelhas choram a cada
instante...
Mas no íntimo, dolorosamente, ele repetiu:
- Sim, é a alma alucinada do meu pobre Henri...
No andar térreo, sozinho, diante da lareira acesa Thom também
ouvira, compreendera e pusera-se a orar com fervor.
Com efeito, Henri Numiers não morrera.
Supondo aniquilar-se para sempre, ao atirar-se da montanha, ele
conseguira aniquilar apenas o corpo carnal. Seu espírito, com a
tenebrosa queda, como que desmaiara, anulara-se como se tudo ao
derredor dele se extinguisse. A violência do gênero de morte que
escolhera traumatizara o seu corpo espiritual, despedaçando-lhe
a harmonia das vibrações de tal forma que um século não bastaria para
que elas retornassem ao ritmo normal necessário a um estado de vida
satisfatório.
Passados que foram alguns dias, porém, Henri começou a voltar a
si do longo desmaio, isto é, um estado de pesadelo angustioso
sobreveio ao desmaio e ele começou a sentir a sensação da queda, as
dores insuportáveis do seu corpo batendo nas pedras, partindo-se,
esmagando-se. Estava cego, pois nada via, uma faixa negra e gelada
envolvia-o, seus pensamentos eram um caos, não podia reunir as ideias,
refletir, compreender o que se passava consigo, por que razão rolava,
rolava da montanha mas sem jamais atingir o solo. Somente podia
refletir em que quisera morrer para fugir à tortura de viver sem a sua
Berthe e que, para isso, saltara para o abismo num gesto pavoroso de
completo louco. Um pavor alucinante invadira sua mente e ele pusera-se
a gritar, a gritar desesperadamente, pedindo socorro. Fora um desses
gritos que as três aldeias testemunharam e que, daquela noite em
diante, começara a repetir-se periodicamente, pelas imediações. Por
vezes, envolvido por aquele pesadelo, sentia-se no fundo do vale ao
mesmo tempo que rolava pela montanha, apavorava-se com a negra solidão
que o rodeava, presenciava, sem saber como, o desespero de seus pais e
as lágrimas dos amigos, chorava também, desesperado, e contemplava,
apesar de cego para as demais ocorrências, os próprios despojos
sangrentos, mutilados, sepultados sob um montão de terra e pedras.
Nada compreendia senão que continuava a sofrer o desprezo da mulher
amada e as humilhações daí consequentes, sofrimentos que, agora,
reunidos ao martírio da inconcebível queda que nunca chegava ao fim,
dele fazia um Espírito enlouquecido no mais alto grau que a mente
humana poderá conceber.
Tudo isso, porém, uma confusão atrocíssima para o desgraçado que
a sofre, passava-se nele com dificuldade, em pequenos intervalos,
pois, de quando em vez, ele perdia-se dentro de um caos, num penoso
estado de colapso. E quando o infeliz esforçava compreender o que se
passava, seus pensamentos, traumatizados, negavam-se a atendê-lo e
desapareciam naquela negridão interior que o confundia. Mas isso era
apenas os vislumbres do despertar, o momento dramático e solene da
ocasião em que o Espírito que abandona seu corpo carnal, valendo-se do
suicídio, começa a se desenraizar dos liames magnéticos que o atavam à
matéria. Esse desprendimento, lento, doloroso, que poderia durar meses
e anos, valeria a Henri períodos infernais, indescritíveis ao
entendimento humano. Sua impressão era de que estava atado por um ímã
poderoso a um objeto do qual, no entanto, precisava desprender-se.
Esse objeto encontrava-se ao sopé da montanha da qual ele rolava sem
jamais parar, na escuridão do vale. Eram os seus despojos sangrentos,
que ele via, apesar de cego, no fundo de uma cova, visão satânica da
qual quisera fugir, mas que se agarrara a ele com um poder dominador,
incapaz de ser repelida. Sobrevinham, em seguida, terríveis
convulsões, fazendo-o estorcer-se como se seus nervos, absolutamente
traumatizados, sofressem choques elétricos ao despenhar-se ele da
montanha. Era como se ataques epilépticos o atingissem avassalando sua
mente, suas vibrações, todas as moléculas do seu ser espiritual; era a
sensação da queda sofrida pelo perispírito, estado depressor que o
acompanharia até a reencarnação futura e que somente o Evangelho,
revigorador de vibrações, reeducando-lhe a mente, poderia reencontrar.
Nesse inconcebível estado traumático gritava de horror e procurava
agarrar-se a qualquer coisa a fim de se deter na queda, e o
desgraçado, apesar de tudo, através do pesadelo que o torturava, sente
que continua sendo a personalidade Henri Numiers, que ele mesmo é que
rola da montanha, que ele mesmo é que está estirado sob o montão de
terra, apodrecido, corroído pelos vibriões, despojos de carnes
sangrentas, negras, asquerosas, miseráveis, ele, que fora belo e
forte, e que, a despeito disso, está vivo, sofredor e desgraçado, mas
vivo, pensante, sensível.
Por vezes, sem saber como, vencido pelo cansaço e o desânimo,
todos os atos de sua vida se lhe desenham no interior da consciência
com uma minúcia de detalhes que o infeliz, já alucinado, converte-se
em verdadeiro réprobo: seus modos de orgulhoso, sua indiferença pelos
que o rodeiam em sua aldeia, o menosprezo a conselhos sensatos que
recebia, a ingratidão para com os pais, sua arrogância de ateu, suas
baixezas de ébrio e devasso, primeiro em Stainesbourg, ao perder
Berthe, depois em Bruges; suas refregas com os moços da aldeia, todos
marcados nas faces por sua faca, o suicídio de Franz Schmidt, a que
dera causa, tudo o que constituíra o seu eu atuante na intimidade do
lar e na sociedade agora desfilava diabolicamente em torno dele como
cenas vivas que o enlouqueciam de mistura com as torturas que já o
afligiam. Quer furtar-se à imposição do panorama de si mesmo, mas, em
vão. A visão do que ele próprio foi e de como se conduziu na vida ali
está, à sua frente, dentro dele, quais faixas de fogo que lhe
devorassem o ser na desaprovação própria a que chamam arrependimento,
remorso!
Não podendo mais ou julgando-se exausto de tantas dores e
sofrimentos, pensou em sua casa, saudoso do conforto desfrutado entre
seus pais, da solidariedade de sua mãe, que ele tão mal soubera
compreender e menos ainda agradecer. Num esforço supremo da própria
vontade conseguiu locomover-se... e ei-lo à procura de socorro no lar
paterno.
Penetra naquela casa que o viu nascer e lhe dera os dias mais
felizes que vivera. Diante de sua mãe, a quem encontra enferma e
alquebrada, exclama cheio de queixas, julgando-se ouvido e
compreendido:
- Mãe, minha mãe! Tem compaixão de teu filho, que está ferido,
enterrado vivo. Não, minha mãe, eu não estou morto, eu não morri,
estou vivo, todos se enganaram a meu respeito. Olha em que estado me
encontro: todo corroído por vermes, que me mordem e maltratam como
lobos. Não posso sair de lá e sofro satanicamente, debaixo daquela
terra pestilenta, que cheira a imundície. Não posso mais, tira-me de
lá, tenho horror àquela caverna onde me prenderam, vejo fantasmas, que
se riem do estado em que me encontro. Franz Schmidt está lá e culpa-me
do que lhe aconteceu, tira-me de lá, minha mãe, eu estou vivo, estou
vivo, estou vivo!
Mas Marie, que nada via nem ouvia do que ele lhe dizia, não
respondia, continuando a chorar, como sempre.
A angústia do pobre suicida recrudescia então e ele saía,
desesperado, a procurar socorro noutra parte. Visitava o Presbitério,
dirigia-se a Padre Rômulo e ao amigo Thom, suplicava auxílio,
queixando-se sempre, e via que ambos o entendiam, mas, em vez de
empunharem uma enxada e irem ao vale, a fim de desenterrá-lo,
punham-se a orar banhados em lágrimas. E corria a aldeia rogando
piedade e socorro a quantos encontrava. Ninguém lhe respondia, ninguém
lhe dava atenção, mas alguns poucos se benziam e oravam.
Entretanto, começou a correr o boato de que a alma de Henri
sofria suplícios e que fora vista e reconhecida por alguns antigos
amigos, e que ele mostrava-se horrorosamente feio: as vestes
despedaçadas, rasgadas pela queda, o rosto esfolado e ensanguentado,
as pernas quebradas, mutilado, imagem perfeita daqueles destroços que
haviam sido sepultados no vale.
Entrementes, o suicida não encontrava refrigério em parte alguma.
Por toda parte onde tentasse o socorro alheio acompanhava-o as
terríveis sensações que descrevemos. Por toda parte a sensação da
queda que o alucinava. Por toda parte a sentir-se grilheta do próprio
corpo que apodrecia no vale, a saudade da esposa, a humilhação do seu
desprezo, o desespero de uma situação confusa, enigmática, atroz.
Henri Numiers trazia o inferno dentro de si.
Querendo furtar-se ao desgosto que, pela primeira vez o visitara,
matou-se para dormir o eterno sono do esquecimento. Mas não encontrou
o sono depois do suicídio. Não encontrou esquecimento. Encontrou
apenas o seu próprio ser sofrendo novas fases de angústias criadas por
ele próprio. Assim é o suicídio.
(Espírito de Charles - Médium Yvonne A. Pereira - Obra: O Cavaleiro de Numiers)